A botica foi uma das instituições ocidentais que aqui aportaram com os portugueses. O cirurgião-barbeiro, os jesuítas e o aprendiz de boticário, que chegaram aqui com os primeiros colonizadores, trouxeram as “caixas de botica”, uma arca de madeira que continha certa quantidade de drogas. Cada “entrada” ou “bandeira”, expedição militar ou científica, no caso dos viajantes naturalistas, os fazendeiros, senhores de engenho e também os médicos da tropa ou senado das câmaras municipais – todos as possuíam com um bom sortimento de remédios para socorros urgentes.Caixa de Botica
Até princípios do Império, os barbeiros concorreram com as boticas no comércio de drogas, suas lojas venderam mezinhas (remédios caseiros), aplicaram, alugaram ou venderam sanguessugas, ou bichas, e manipularam receitas. Nos tempos coloniais existiram poucas boticas. Os jesuítas e os hospitais militares tinham as únicas com que muitas vilas e cidades podiam contar. Os boticários eram oriundos geralmente de famílias humildes e obtinham seus conhecimentos nas boticas tornando-se ajudantes e aprendizes de um encartado. Para a obtenção da Carta de examinação, que lhes possibilitaria o exercício do ofício, submetiam-se a um exame junto aos comissários do físico-mor do reino.
Em fins do século XVII, algumas boticas já tomavam a aparência das boticas do reino. Situadas nas principais ruas, ocupavam dois compartimentos. O boticário e sua família residiam nos fundos. Num cômodo ficavam as drogas expostas a venda. Sobre as prateleiras viam-se boiões de boa louça, e potes com decorações artísticas continham pomadas e ungüentos; frascos e jarros de vidro ou de estanho, etiquetados, guarneciam xaropes e soluções. No outro cômodo, estava o laboratório da botica.
Mesa, potes, frascos, balança, medidas de peso, copos graduados, cálices, bastões de louça, almofarizes, alambiques, destiladores, cadinhos etc, e uma edição da Polianteia Medicinal de Curvo Semedo – essencial para preparar a mezinha (remédio caseiro) receitada por um físico ou cirurgião, ou padre, ou curandeiro.
O primeiro boticário a trabalhar no Brasil foi contrato por Tomé de Sousa. Ele recebia 15 mil réis por ano para cuidar da caixa de botica. Fugindo da Inquisição, a maioria dos boticários eram cristãos-novos, de origem judaica, como Luis Antunes, que possuía uma botica em Recife, em frente ao Hospital da Misericórdia.
Os cirurgiões, que formavam a maior parte dos profissionais de saúde, também atuavam como boticários. No século XVIII, como os boticários não tinham formação em química farmacêutica, os droguistas passaram a controlar o preparo e o comércio dos preparados químicos, como sais, tinturas, extratos e várias preparações de mercúrio. Dessa forma, os Vallabela, droguistas italianos radicados em Lisboa, enriqueceram enviando drogas para o Rio de Janeiro e Bahia.
Uma importante fonte de renda para os boticários era o fornecimento para as naus de guerra e fragatas. A preparação das caixas de botica, bem sortidas para as tropas ou em socorro a capitanias com epidemias, podia render boa soma aos boticários. Em função da possibilidade de ganhos que o monopólio da fabricação e comércio de remédios lhes garantia, os boticários foram acusados de zelarem mais pelos próprios interesses que pela saúde dos seus semelhantes.
Entre 1707 e 1749, 89 boticários prestaram exames no Brasil. Nas boticas jogava-se e conversava-se muito. Viajantes observaram que nos cafés e em certas boticas se reuniam, de portas cerradas, sociedades particulares para se entregarem apaixonadamente a jogos de cartas e de dados. No século XVIII, discussões políticas ou religiosas, além de simples confabulações, ocorriam nesses locais. Vários boticários eram membros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro e usavam o espaço das suas boticas para reuniões em que se discutiam temas proibidos. Não havendo imprensa, as boticas tornavam-se um dos poucos espaços para a divulgação das idéias que viriam a ameaçar o próprio estatuto colonial, abrindo os caminhos que levariam à Independência.
A formação médica e farmacêutica
No Brasil, a Academia Imperial de Medicina (1829 – 1889) foi o principal fórum de debates sobre o ensino médico e a saúde pública imperial e a principal trincheira voltada a defender o modelo anátomo-clínico francês e as idéias higienistas. A formação médica no ambiente hospitalar se tornou fundamental.
No final do Império, as reformas do ensino médico levantaram a bandeira do ensino experimental. Nesse contexto, a fisiologia experimental e a patologia celular, que viriam a produzir da medicina de laboratório, medicina sem doentes, estavam se consolidando no horizonte da clínica.
A reforma do ensino em 1832 previa a criação do curso farmacêutico junto às faculdades de medicina do Império. As disciplinas a serem ministradas eram divididas em três anos. Para obter o título de farmacêutico, o aluno deveria praticar, pelo mesmo período de três anos, numa botica de um boticário diplomado.
Em 1838, Manoel Francisco Peixoto, farmacêutico diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no ano anterior, em discurso pronunciado na Academia Imperial de Medicina, reclamava a respeito do esvaziamento do curso farmacêutico em contraste com o curso médico. Os farmacêuticos pertencentes a Academia Imperial de Medicina e às associações farmacêuticas que se formaram a partir de 1850 reivindicavam que as faculdade deveriam ter o monopólio da concessão de diplomas como forma de restringir o exercício da farmácia aos homens de ciência de formação acadêmica.
Além dos cursos farmacêuticos oferecidos pelas duas únicas faculdades de medicina no Império – a do Rio de Janeiro e da Bahia -, em 1839 foi criada pela Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais, a Escola de Farmácia de Ouro Preto.
A partir da promulgação da Primeira Constituição Republicana, 1891, que propôs um sistema educacional descentralizado, o ensino farmacêutico estendeu-se a outros estados.
Boticários ou farmacêuticos?
Em 1875, o farmacêutico Manoel Hilário Pires Ferrão proferiu conferência intitulada “Da farmácia no Brasil e de sua importância: meios de promover a seu adiantamento e progresso”. Nessa ocasião, chamou a atenção para a distinção que deveria ser feita entre boticário e farmacêutico. Boticário podia ser qualquer um que resolvesse abrir uma botica e comercializar a retalho vários remédios sem ter direito para isso. Citava a França como exemplo a ser seguido, pois desde finais do século XVIII adotara o nome farmacêutico para designar aqueles que eram formados em cursos regulares de farmácia. Oficina ou laboratório farmacêutico substituía o termo botica. Acreditava que naquele país a farmácia mantinha “um paralelismo de dignidade e proficiência com a classe médica”. Pires Ferrão assinalava a importância da farmácia como estabelecimento que lidava com a saúde, e que por isso deveria ter um tratamento diferenciado de outras casas comerciais, no que se refere à cobrança de impostos e jurisdição. Nota-se assim, o desenvolvimento de uma elite farmacêutica ansiosa em equiparar-se aos médicos e diferenciar-se dos outros curadores e do estigma das velhas boticas.
A designação “boticário” continuou a ser usada pela população para se referir ao farmacêutico diplomado. Apesar da lei de 03 de outubro de 1832 estabelecer que ninguém poderia “curar, ter botica, ou patejar” sem título conferido ou aprovado pelas faculdades de medicina, muitos proprietários de boticas pagavam farmacêuticos diplomados para dar nome a seus estabelecimentos, prática que se estendeu até o século XX.
As boticas ou farmácias, mesmo nos centros urbanos da época, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Ouro Preto e Recife, acabavam funcionando como locais de assistência médica e farmacêutica, incluindo a prescrição e manipulação dos medicamentos e, provavelmente, a aplicação de procedimentos terapêuticos usuais na época, tais como sangrias, com o emprego de ventosas, lancetas ou sanguessugas, instrumentos que se encontravam à venda nas próprias farmácias.